Agência Brasileira de Inteligência (Abin), órgão do governo federal, produziu ao menos dois relatórios para orientar a defesa do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), um dos filhos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), a pedir a anulação do caso Queiroz. Os documentos foram revelados pela revista "Época" na edição de sexta-feira (11).
Segundo a "Época", nesses documentos a Abin especifica a finalidade de "defender FB [Flávio Bolsonaro] no caso Alerj [Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro]"; sugere a substituição dos "postos", em referência a servidores da Receita Federal; e traça uma "manobra tripla" para tentar conseguir os documentos que a defesa de Flávio espera.
Os relatórios apontam a existência de um suposto esquema criminoso na Receita para fornecer dados de Flávio que embasassem o inquérito da rachadinha (desvio de salários de funcionários do gabinete). A autenticidade e a procedência dos documentos foram confirmadas à "Época" pela defesa do senador. De acordo com a revista, os relatórios da Abin foram enviados em setembro, por WhatsApp, a Flávio, que os repassou aos seus advogados.
Os documentos contradizem a declaração do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) em 23 de outubro, quando outra reportagem da revista "Época" revelou que órgãos do governo se mobilizaram em busca de elementos que permitissem a anulação das investigações envolvendo Fabrício Queiroz, ex-assessor e ex-motorista de Flávio, além de amigo do presidente Bolsonaro.
Na ocasião, o GSI confirmou ter sido procurado pelas advogadas do parlamentar, mas declarou que as denúncias apresentadas pela defesa se mostraram um tema interno da Receita e que, respeitando suas atribuições legais, não realizou qualquer ação. Nesta sexta, o GSI reiterou essa versão.
Desde julho de 2019, a Abin tem como diretor-geral Alexandre Ramagem. Em abril deste ano, ele chegou a ser indicado pelo presidente Bolsonaro para comandar a Polícia Federal. No entanto, a nomeação foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Bolsonaro havia nomeado Ramagem para a PF após exonerar Maurício Valeixo do cargo. A saída de Valeixo motivou o pedido de demissão de Sergio Moro, então ministro da Justiça. Moro deixou o cargo afirmando que Bolsonaro tentava interferir na corporação.
Flávio Bolsonaro foi denunciado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro como chefe de uma organização criminosa num esquema de rachadinha na época em que era deputado estadual, de 2003 a 2018. A força-tarefa apurou, até agora, que houve um desvio de cerca de R$ 6 milhões no gabinete de Flávio na Alerj.
Um dos principais funcionários investigados no esquema é Queiroz. Segundo o Conselho de Atividades Financeiras (Coaf), ele movimentou em sua conta – de maneira considerada "atípica" – R$ 1,2 milhão, entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017. Queiroz foi preso em junho deste ano e está em prisão domiciliar desde o mês seguinte.
Flávio nega todas as acusações, diz ser vítima de perseguição e critica o vazamento das informações do processo, que corre em segredo de Justiça. Os advogados do senador vêm alegando que a Receita acessou ilegalmente os dados dele.
Procuradas pela produção, a assessoria de Flávio e a advogada Luciana Pires não quiseram se manifestar. O Planalto e a Receita não haviam respondido aos contatos até a última atualização desta reportagem.
Em nota, a Abin disse que agência e seus associados "não realizam e jamais aprovariam ou tolerariam a utilização da Instituição para a produção de documentos voltados para defesas jurídicas de pessoas ou grupos, muito menos para qualquer finalidade diversa das previstas em Lei" (leia, abaixo, outros trechos do comunicado).
No Congresso Nacional, já foi preparada uma representação pedindo que a Procuradoria Geral da República abra investigação sobre os relatórios. A procuradoria, por sua vez, informou que "deverá receber representações já anunciadas por parlamentares em redes sociais e vai analisar o caso e se manifestar oportunamente".
Primeiro relatório
A reportagem da "Época" mostra que o primeiro relatório da Abin tem como finalidade declarada "defender FB [Flávio Bolsonaro] no caso Alerj". No documento, segundo a revista, a Abin cita uma "linha de ação" para cumprir a missão de "obtenção, via Serpro [Serviço Federal de Processamento de Dados] de 'apuração especial', demonstrando acessos imotivados anteriores (arapongagem)".
Serpro é o serviço de processamento de dados do governo federal.
O relatório da Abin, segundo a "Época", fala sobre dificuldade para a obtenção dos dados pedidos à Receita e faz imputações a servidores a ex-secretários do órgão, como Everardo Maciel.
"A dificuldade de obtenção da apuração especial (Tostes) e diretamente no Serpro é descabida porque a norma citada é interna da RFB da época do responsável pela instalação da atual estrutura criminosa — Everardo Maciel. Existe possibilidade de que os registros sejam ou já estejam sendo adulterados, agora que os envolvidos da RFB já sabem da linha que está sendo seguida", diz o relatório, referindo-se a José Tostes Neto, atual chefe da Receita.
Depois da publicação da reportagem da "Época", Maciel disse ser alvo de "raiva institucional" da Abin, porque, no período em que esteve à frente do órgão, ele teria instituído regras mais rígidas sobre a acesso a informações sigilosas (leia, mais abaixo, o que Maciel falou sobre os relatórios).
É este primeiro relatório que sugere a substituição dos "postos", em referência a servidores da Receita. O documento também afirma, segundo a "Época", que essa recomendação já havia sido feita em 2019.
"Permanece o entendimento de que a melhor linha de ação para tratar o assunto FB e principalmente o interesse público é substituir os postos conforme relatório anterior. Se a sugestão de 2019 tivesse sido adotada, nada disso estaria acontecendo, todos os envolvidos teriam sido trocados com pouca repercussão em processo interno na RFB!”, explica o relatório.
No fim do texto, a Abin sugere que o presidente Bolsonaro demita Waller Júnior da Corregedoria-Geral da União (CGU) e coloque no lugar dele um policial federal: "Neste caso, basta ao 01 [referência a Bolsonaro] comandar a troca de WALLER por outro CGU isento. Por exemplo, um ex-PF, de preferência um ex-corregedor da PF de sua confiança".
A agência traça, segundo a "Época", uma outra "alternativa de prosseguimento", que inclui CGU, o Serpro e a Advocacia-Geral da União (AGU).
"Com base na representação de FB protocolada na RFB (Tostes), CGU instaura sindicância para apurar os fatos no âmbito da Corregedoria e Inteligência da Receita Federal; Comissão de Sindicância requisita a Apuração Especial ao Serpro para instrução dos trabalhos. Em caso de recusa do Serpro (invocando sigilo profissional), CGU requisita judicialização da matéria pela AGU. (...) FB peticiona acesso à CGU aos autos da apuração especial, visando instruir Representação ao PGR Aras, ajuizamento de ação penal e defesa no processo que se defende no RJ", sugere o texto.
De acordo com a revista, a Abin resume a estratégia: "Em resumo, ao invés da advogada ajuizar ação privada, será a União que assim o fará, através da AGU e CGU — ambos órgãos sob comando do Executivo".
Procurada pelo equpe de reportagem, a CGU informou que não iria comentar. A AGU não havia respondido até a última atualização desta reportagem. O Serpro declarou que "não se manifesta a respeito dos temas relacionados à Receita Federal do Brasil, devido a cláusulas contratuais firmadas entre a empresa e o cliente".
Outro trecho atribuído pela revista ao documento também trata da "neutralização da estrutura de apoio", a demissão de "três elementos-chave dentro do grupo criminoso da RF", que "devem ser afastados in continenti".
"Este afastamento se resume a uma canetada do Executivo, pois ocupam cargos DAS. Sobre estes elementos pesam condutas incompatíveis com os cargos que ocupam, sendo protagonistas de diversas fraudes fartamente documentadas."
A reportagem diz que o documento não especifica quais seriam as condutas, mas sugere a demissão de outros três servidores: o corregedor José Barros Neto; o chefe do Escritório de Inteligência da Receita no Rio de Janeiro, Cléber Homem; e o chefe do Escritório da Corregedoria da Receita no Rio, Christiano Paes.
Christiano Paes foi demitido na semana passada. Do Diário Oficial da União, consta que a demissão foi "a pedido" do servidor. Ele comandava a Corregedoria da Receita do Rio havia pelo menos 15 anos e, durante esse período, coordenou trabalhos que ajudaram a força-tarefa da Lava Jato em duas investigações contra auditores fiscais sob suspeita de cobrar propina de empresários investigados.
Segundo relatório
O segundo relatório, de acordo com a "Época", traça uma "manobra tripla" para tentar conseguir os documentos que a defesa espera.
“A dra. Juliet [provável referência à advogada Juliana Bierrenbach, também da defesa de Flávio] deve visitar o Tostes, tomar um cafezinho e informar que ajuizará a ação demandando o acesso agora exigido”, diz o texto da Abin, segundo a "Época".
O relatório também sugere, de acordo com a revista, que a defesa peça ao chefe do Serpro o fornecimento de uma apuração especial sobre os dados da Receita, baseando-se na Lei de Acesso à Informação — o que, de fato, a defesa de Flávio Bolsonaro faria. A Abin ressalta que o pedido deve ser por escrito.
"O e-sic [sistema eletrônico da Lei de Acesso] deve ser evitado pois circula no sistema da CGU e GILBERTO WALLER integra a rede da RFB."
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