Nos últimos tempos, tem ganhado espaço na mídia e nas redes sociais um fenômeno que, à primeira vista, pode parecer excêntrico ou curioso: mulheres e casais que “adotam” bonecas reborn — réplicas hiper-realistas de bebês — e as tratam como se fossem filhos. Fotos, vídeos, carrinhos de bebê, roupas, fraldas. Tudo cuidadosamente pensado para simular a maternidade ou paternidade.
O assunto, no entanto, tem sido frequentemente tratado com escárnio. Vídeos com gargalhadas, resenhas cômicas, piadas prontas. A atitude de quem adota uma boneca como filho vira material para o entretenimento alheio. Mas será que deveríamos estar rindo? Não se trata apenas de observar um comportamento inusitado, mas de perceber o que ele revela sobre o nosso tempo. Em vez de julgar ou ridicularizar, talvez seja hora de olhar com mais profundidade. O que esse tipo de atitude nos sinaliza sobre a saúde mental das pessoas? E a nossa?
Toda mulher, todo homem, todo casal é livre para decidir se deseja ou não ter filhos biológicos. Essa escolha é legítima e deve ser respeitada. No entanto, quando vemos uma boneca sendo tratada como uma criança real — com nome, quarto decorado, rotinas e cuidados — é impossível não pensar nas milhares de crianças reais que vivem em abrigos, aguardando por uma família, por um lar, por um abraço apertadinho.
A substituição do vínculo humano por uma representação estática pode ser um sintoma. Um reflexo de dores não elaboradas, da dificuldade de lidar com perdas, frustrações ou traumas afetivos. Também pode estar relacionada à solidão, à falta de rede de apoio, ou até mesmo à pressão social sobre a maternidade e o papel da mulher.
Vivemos em uma era em que os sofrimentos da alma são, muitas vezes, camuflados. A tristeza vira meme. A dor emocional vira piadinha de “haters”. O comportamento incomum vira conteúdo viral. Estamos perdendo a capacidade de reconhecer os sinais sutis de sofrimento psíquico, e mais ainda, de acolhê-los com seriedade.
Há outras formas de expressar afeto, cuidado e amor, inclusive por meio da adoção de um animal doméstico. Cães e gatos lotam ONGs, esperando também por um lar. Ao contrário das bonecas, eles devolvem carinho, criam laços verdadeiros, interagem e se tornam parte viva da rotina de uma casa. São uma forma real de estabelecer vínculos afetivos, de maneira saudável.
Como pesquisadora, escritora e mãe, não posso ignorar o que esse fenômeno nos revela. Talvez ele seja apenas mais um dos muitos espelhos de uma sociedade emocionalmente fragilizada, que ainda não aprendeu a lidar com a própria dor. Precisamos falar sobre saúde mental com mais responsabilidade, mais empatia e menos tabu. Precisamos aprender a reconhecer os sinais — inclusive aqueles disfarçados de doçura. Porque, sim, muita ternura também pode esconder feridas profundas.
Cuidar da mente e das emoções não é fraqueza nem motivo de vergonha. No mundo em que vivemos, é um ato de coragem. É sobrevivência.
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