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Palco Cultural Novembro Negro

O filho da empregada doméstica e do vendedor de caldo de cana que se tornou professor

Filhos e filhas da resistência

12/11/2020 10h45 Atualizada há 5 anos
Por: Ana Meire Fonte: Conectado News
Foto Arquivo pessoal
Foto Arquivo pessoal

 

Filhos e filhas da resistência é a nossa série em homenagem aos nossos irmãos negros, que têm muito a nos ensinar. Durante todos os dias do mês de novembro traremos incríveis histórias. Cada depoimento serve de reflexão, inspiração e muito, muito respeito.

Hoje o nosso protagonista é Miguel Lima dos Santos, natural de Feira de Santana, 40 anos de idade, professor, que nos ensina o que é superar, mantendo a humildade. Acompanhe aqui, no Conectado News! 

“Eu me sinto muito privilegiado em contar um pouco da minha história para vocês. Estou muito feliz e  agradecido pelo convite. Que honra em poder participar desse momento ímpar que vocês estão promovendo para nós, negros”. 

Eu gosto de começar a minha história falando dos meus pais, que foram pessoas muito importantes em minha vida. Sou realmente grato a eles, que me concederam essa dádiva de viver. Meu pai veio de Mutuípe, cidade aqui do sul da Bahia e minha mãe de Tapiraípe, distrito de Rui  Barbosa.  Eles se encontraram aqui em Feira de Santana, pois ele é analfabeto e trabalhou como vigilante, engraxate e  por último vendedor de caldo de cana, ali na Praça da Igreja dos Remédios. O povo o  conhecia como “Tonhão do caldo de cana”. Já minha mãe estudou até a 3ª série do Ensino Fundamental e  sempre foi doméstica,  trabalhava como lavadeira e  faxineira.  Eu sou o 3º filho dos 6 que o casal teve. 

Lembro que minha mãe, quando ia fazer faxina ou lavar roupas nas casas das pessoas, as vezes me levava e, com isso, eu fui crescendo ajudando-a na limpeza das residências dos nobres e a partir daí, fui aprendendo a desenvolver o ofício dela de faxineira. Aprendi também, junto com meus outros irmãos,  a profissão de meu pai, vendedor de caldo de cana, pois ele sempre  colocava barraca em  festas populares como micaretas, exposição e nos campos de futebol e fomos fazendo o que ele mandava, raspando a cana e também moendo na máquina para fazer a garapa. 

Anos se passaram e fui crescendo, ora ajudando meu pai nas vendas, ora indo com minha mãe  fazer faxinas e em uma dessas casas, uma senhora pediu pra minha mãe um garoto para ser o caseiro da casa dela. Automaticamente mainha me indiciou e aos 13 anos eu já trabalhava nessa residência, onde eu tinha que chegar às 07 horas da manhã e só saia às 17. Foram poucos dias que servir a essa família, pois eu estava de férias da escola. Porém, eu confesso a vocês que esse período em que passei lá, conheci  e vivi o real significado das palavras escravidão e discriminação. Passei fome nesse lugar, pois eu tinha que esperar família almoçar pra depois comer o resto e , para não morrer de fome até a comida sair, eu bebia água na torneira que ficava na parte externa da casa. Sem contar que eu tinha meu copo, meu prato e minha colher, todos na cor azul e ficavam separados debaixo da pia da cozinha. Graças a Deus que as aulas voltaram e não precisei retornar à aquela escravidão disfarçada.  

Ele continuou: “Nós passamos por momentos muito difíceis, pois em períodos chuvosos, minha mãe que lavava roupas, na maioria das vezes não podia lavar, pois o sol era escasso pra secagem dos panos e as faxinas eram poucas. Meu pai não conseguia vender caldo de cana, pois dependia também do tempo quente e ensolarado pra ganhar um trocado. E para a gente não passar fome, um amigo de meu pai que tinha um restaurante bem famoso aqui na cidade, nos dava peles e pés de galinha e a gente comia muito  assado, cozido ou  frito. As peles da galinha, minha mãe limpava e fritava, deixando-as torradinhas pra a gente comer e aquela gordura que saia, a gente aproveitava para cozinhar feijão. Foram momentos difíceis que passamos. E hoje, eu me sinto triste, quando vejo chegar o período chuvoso, pois há  muitas pessoas que dependem do sol para ganhar dinheiro, porém não conseguem por causa da chuva.

Aos 14 anos de idade, eu quis estudar à noite, para poder trabalhar durante o dia e “ganhar minha grana”. Fui até  a escola em que estudava e solicitei a minha transferência. Com meu histórico em mãos, consegui me matricular numa escola e segui em frente, ajudando minha mãe nas faxinas, que as vezes eram em casa de família e outras em estabelecimentos comerciais, como em uma farmácia, local que a íamos todas as terças-feiras, limpávamos tudo e no finalzinho da tarde recebíamos nosso dinheiro e íamos pra casa.

Meu segundo trabalho foi nessa farmácia, pois minha mãe engravidou e não podia mais fazer faxinas. Eu acabei ficando no lugar dela, ganhando por semana R$ 10,00(Dez reais) e com esse dinheiro eu conseguia comprar meus ticket estudantil(vale transporte estudantil na época) para ir pra escola durante a semana. Ajudava nas despesas de casa e ainda conseguia curtir serestas aos sábados e domingos com meus amigos de infância.

Aos 15 anos, eu era um “Severino” da vida, pois fazia tudo nessa farmácia. Limpava, atendia clientes, tirava xerox, fazia serviços bancários, atendia telefone. Eram muitas coisas que eu fazia  naquela época e acabei sendo contrato pra trabalhar todos os dias e pra ganhar  apenas 50 reais. Com esse dinheiro, eu pagava meu transporte, ajudava em casa e conseguia curtir meus fins de semana com minha galera. 

Eu me lembro que saía de casa todos os dias às 7h da manhã, minha mãe colocava minha marmita dentro da mochila e quando eu ia almoçar meio dia, minha comida já estava fria. Eu realmente fui um ‘boia-fria”. As vezes eu não tinha tempo de lavar a vasilha do almoço ou então faltava  água no local, então eu  a guardava suja dentro da mochila e, quando eu chegava na escola, à noite, ficava com vergonha de abrir a mochila, pois a marmita suja exalava um cheiro de comida estragada e eu ficava com medo dos meus colegas sentirem e rirem de mim. Mas mesmo assim eu abria escondidinho, pegava meus livros, pois eu me sentia orgulhoso por ser um estudante e trabalhador, e uma coisa que eu fixei  em minha mente era que o estudo me traria algo de bom pra minha vida e realmente trouxe. 

“A gente vê nitidamente a discriminação das pessoas,  e fazendo uma reflexão da minha vida tive essa certeza, pois  no período em que eu trabalhei em uma empresa do ramo de imobiliária, onde eu fazia todos os serviços desde zelador a telefonista e office-boy, fui surpreendido diversas vezes por situações que me deixavam chateado e sempre se repetiam. As pessoas quando chegavam lá, e eu as recebia, abrindo a porta e dando-lhes aquele bom dia de boas vindas, porém algumas delas jogavam um ‘balde de água fria’ em mim quando perguntavam quem era a pessoa que atendia ali. E eu, pra não perder a ética e a moral que todo negro tem, dizia: ‘Sou eu’! Em que posso ajudar? E elas me olhavam de cima a baixo e não acreditavam que um negro poderia estar ali atendendo-as. Dava pra vê no rosto daquele povo o espanto ou a inveja?  Foram várias situações que passei nesse local, por causa da minha cor. 

Concluí meus estudos e fiz alguns  concursos públicos, porém não consegui ser aprovado. Decidi  fazer curso pré-vestibular gratuito, oferecido pelo município. Sempre após o expediente do trabalho, cansado, eu não desistia daquilo que eu queria e em 2004, depois de fazer alguns vestibulares e não ter  êxito, me inscrevi no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), fiz a prova e consegui obter uma nota boa. Me inscrevi no PROUNI(programa que oferecia bolsas de estudos em faculdade particular)  para o curso de Licenciatura em Matemática, porém não houve estudantes para formar uma turma. Optei por cursar Letras com Inglês, pois foi o único curso que conseguiu formar  turma. E hoje sou formado há 12 anos, leciono inglês em escolas da rede  particular e trabalho em uma escola pelo município aqui da cidade.

É notória essa coisa de discriminação. Decidi fazer um concurso para prefeitura daqui de Feira de Santana em 2006 e fui chamado em 2010. Saí daquele emprego onde as pessoas me discriminavam e me humilhavam. Corri atrás do meu tão sonhado emprego público. Apesar de não ser um cargo dos profissionais do magistério, eu trabalho numa escola, desenvolvendo um cargo de assistente administrativo, nos turnos vespertino e noturno. No período da manhã, leciono em escolas da rede privada e aconteceu comigo uma situação que me deixou  bastante chateado e muito triste.  Eu tive um desentendimento com um aluno, algo  que acontece nos dias atuais corriqueiramente com todos os professores, porém naquele momento de discussão, preferi me silenciar para tentar dá um fim naquilo. E isso foi feito. Porém, um pouco mais tarde, quando saí da sala, vieram três alunos e me falaram: Professor, o senhor ouviu o que o colega falou? Eu respondi que não. Eles disseram que o estudante falou bem baixinho: O LUGAR DE NEGRO NÃO É EM SALA DE AULA DE ESCOLA PARTICULAR E SIM NA SENZALA. A CULPA FOI DAQUELA PRINCESA LÁ QUE ASSINOU A LEI PARA LIBERTAR ESSES PRETOS. Naquele momento, eu não tive reação para responder, até porque eu trabalho lá , um local privado e eu não poderia tomar a frente e tentar resolver a situação, pois esse caso poderia prejudicar a escola que, por sua vez, não fez nada pra resolver o problema. 

Outro dia também, nessa mesma escola,  eu estava no portão, usando o meu fardamento diário e de repente chega uma mãe e me pergunta: ‘Moço, você é o porteiro daqui?’ Eu dei bom dia pra ela e  respondi: ‘Não, eu sou professor de inglês.

O professor concluiu, com uma mensagem muito bonita para todos: “Eu acreditei nos meus estudos, pois fiz de tudo para tentar ser uma pessoa diferente, reconhecida e ter meu espaço nessa sociedade discriminatória que vivemos e,  graças aos meus estudos, consegui conquistar muitas coisas. Estou aqui hoje muito feliz com a profissão que escolhi, pois foi através da educação  que consegui ser o profissional que hoje sou. E ainda pretendo galgar sonhos mais altos, pois farei mestrado, depois um doutorado e, quem sabe futuramente, ensinar em uma universidade e mostrar que, aquele pobre menino,  graxeiro, filho do vendedor de caldo de cana e da diarista, aquele negro que foi humilhado em muitos lugares onde trabalhou, hoje deu a volta por cima e pode até ser o professor dos  seus filhos,  netos  ou bisnetos daqueles que me discriminaram”.  E finalizo com essa frase de Mandela “A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo.”

 

10 comentários
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Lucília Bispo Assis Machado Há 5 anos Feira de Santana - BaParabéns, meu amigo!! Vc é verdadeiramente uma lição de vida. Exemplo a ser seguido de profissional e pessoa. Foi um grande privilégio tê - lo como colega de profissão e como eterno amigo. Vc faz a diferença! Te admiro muito! Um abraço!
DenivaHá 5 anos BahiaBelo exemplo Miguel. A educação nos transforma e pode transformar uma sociedade. Linda a sua história.
Carina Bispo Jesus de SouzaHá 5 anos SalvadorNeto, meu primo, que história impactante. Feliz pelo seu sucesso.
Hildegardes de Moraes Lobo Pereira Há 5 anos Feira de Santana Miguel,que exemplo de vida! Não te conhecia nem 1%
Wellyngton PortugalHá 5 anos FEIRA DE SANTANA- BAParabéns pela matéria com meu amigo e pela sensibilidade do texto em demonstrar sua resistência aos atos a ele dirigidos. Miguel é um exemplo de perseverança e sei que seus alunos e filho terão aonde se espelhar na condução da vida e no enfrentamento dessa herança maldita da diferenciação social tão absurda, assassina e vergonhosa da nossa sociedade.
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